João Cutileiro no seu atelier

Editorial

João Cutileiro é uma figura com grande reconhecimento público, mas, que eu em particular admiro como artista, desde que me interessei pelas artes plásticas. Depois de o conhecer pessoalmente, esta admiração tem vindo num crescendo a cada contacto, pelas inequívocas qualidades pessoais de autenticidade, frontalidade e sentido profissional que possui.
Trata-se de um artista que sofreu amarguras no seu percurso como escultor, não se rendendo perante ideais políticos ou capitalistas onde não se reconhece e mantendo uma coerência ideológica no seu trabalho, que se mantém até aos nossos dias.
Por estar ligado ao meio artístico por paixão e por desejar prestar uma homenagem pública a uma pessoa que me tem marcado e influenciado na concepção que idealizo para as artes plásticas em Portugal e no Mundo, surgiu este blog, que, pretende então ser uma pequeníssima consagração ao homem e à sua obra, fazendo votos para que no futuro nos continue a surpreender com novas propostas artísticas, sabendo de antemão que a qualidade é um domínio que nunca abandona, e a vitalidade física e intelectual se perpetuarão por um muito longo período.
Obrigado João Cutileiro pelo que trouxe às artes plásticas.

Entrevista

JR: José Rafeiro
JC: João Cutileiro

JR: Os temas que aborda são muito variados e nada estanques, como é que isso afecta o seu processo de trabalho?
JC: Não afecta o meu processo de trabalho, são consequências do meu processo de trabalho, do meu processo de trabalho é que resulta que os temas sejam variados e não estanques.

JR: De certo modo pondera essa unidade entre os seus temas como um processo contínuo ou em desenvolvimento?
JC: Para mim quando me faz essa pergunta confunde-me por que para mim, contínuo ou em desenvolvimento são a mesma coisa.

JR: Quando falo em contínuo refiro-me a situações em que não existe evolução.
JC: Bom aí de mim se não evoluírem… eu não me proponho escrever os Lusíadas com dez estrofes em cada canto, tento não me propor a fazer nada e muito menos dizê-lo. Por exemplo, em peças de uma certa dimensão, adoro fazer maquetas odeio mostrar as maquetas às pessoas interessadas ou ao chamado dono da obra, na medida em são vinculativas, quer a gente queira, quer não, um simples esboço é vinculativo em criar uma expectativa no dono da obra, que eu não quero que seja criada, eu quero manter a liberdade total para poder variar e mudar. Tenho uma peça num terreiro em frente ao Castelo de Almurol de que fiz umas oito maquetas e em que a peça final é talvez uma simbiose das maquetas todas. Não peguei numa e não comecei a medir e ampliei, não, depois de fazer aquelas atirei-me de fresco de novo às pedras, comecei a cortá-las e empilhá-las e quase que escondi as maquetas para elas próprias não me influenciarem, não me prenderem, não me colherem os movimentos.

JR: Tal como quase todos os grandes artistas a sua obra cria ódios e paixões. Preocupa-o a forma como o observador comum ou o crítico de arte a analisam?
JC: Preocupar não é bem o termo, mas, não quer dizer que eu não seja ultra-vulnerável ao cão que alça a perna e mija na escultura que eu fiz, sou vulnerável e voltando atrás, quando toca o dono da obra e a ideia de não ser pago, porque ele não gostou é chato, é sempre chato.

JR: Já lhe aconteceu?
JC: Não, mas, eu tento que não aconteça, tento garantir que se não gostar não gosta pronto, acabou, à coisas que têm de ser, por exemplo, esta peça de Almurol é uma peça que tem 5 metros ou 6 ou lá o que é, não é fácil eu ficar com ela aqui metida em casa, mas, felizmente o arquitecto da obra, que não é bem o dono da obra é o procurador do dono da obra, foi seguindo a evolução e eu não preocupei muito. Se depois o Presidente da Câmara não gostasse muito já era secundário, porque, estava integrada no total, no global da peça.

JR: E prefere trabalhar por encomenda ou olhar para o bloco de pedra e partir para o trabalho sem sugestões?
JC: Eu gosto das duas. Eu gosto de ter encomendas, porque, as encomendas sacodem-me, vêem-me propor novos despiques, também sou cozinheiro e a encomenda pode ser alguém que eu convido para almoçar e não gosta de peixe ou que é diabético, a pessoa que é diabética é uma encomenda por si, e tentar fazer as coisas de acordo com essa dieta é um estímulo. Obrigou-me até comigo próprio, quando fui declarado diabético, foi um estímulo enorme para a minha criatividade culinária, mudar a maneira de fazer as coisas e as coisas, propriamente ditas, tirar o prazer de as fazer e de as comer, de forma que na escultura a encomenda é um pouco isso. No outro dia tive uma encomenda que está ali fora, neste momento, que é uma capela, que eu não estava à espera e fiz uma pergunta quando fiquei assim sem saber o que fazer, até porque, a proposta veio por telefone de um arquitecto que eu não conhecia e tentei visualizar e disse que sim, mas, eu queria ser o autor do conjunto do altar, é claro que eu baseio-me numa experiência anterior que aconteceu para aí à uns dez anos ou mais. Vieram-me propor fazer um Cristo para uma capela num solar do século XVIII, no Minho. A capela existia, mas, estava completamente desventrada, não tinha nada, era só o espaço e até achei que o senhor estava a exagerar, porque, queria um Cristo com dois metros de altura e eu achei que para uma capela de um solar, era um pouco grande demais. Depois fui ver o espaço, comecei por não aceitar, mais tarde enviei um faxe (ainda não existiam emails pelo menos na minha vida) a perguntar se podia ser em preto e ele respondeu, pode ser como o Mestre quiser, fiz o Cristo em preto e ele veio cá buscar, gostou muito, levou-o e depois telefonou-me a perguntar se não lhe podia fazer o altar, já agora, e eu aceitei e fiz o altar. Depois visitou-me a pedir que eu lhe fizesse os Passos da Cruz ao que eu disse que estudaria e deixou-me um livro com os Passos da Cruz, porque, a minha ignorância religiosa é total e eu não sabia o que é que envolvia os Passos da Cruz. Depois de folhear o livro e contemplar dias a fio disse ao senhor que não os conseguia fazer, porque, depois de tudo o que recolhi eu fazia umas placas também pretas, o Cristo era preto, o altar já era preto, umas placas em mármore preto e ia riscá-lo em romano I, II, III, IV, V até ao XII, ao que o senhor sorriu muito paternalistamente e disse que era assim que na Idade Média se fazia, e lá está no solar das Bouças, uma capela que é minha e esta coisa de ter controlado o processo todo ajudou-me a dizer que sim a esta de agora, mas, avisei desde logo que não ia pôr um altar com dourados e fiz uma coisa que nunca tinha feito, que foi o Sacrário, a capela do solar das Bouças não tem Sacrário. Minto, tem Sacrário mas foi feito de uma maneira completamente diferente e não ortodoxa contemporânea, é o altar propriamente dito que tem uma pedra no meio que se tira, que se levanta e a hóstia está por baixo dessa pedra, ao passo que este é uma caixa ao fundo do altar.

JR: Considera então, que a sua obra está associada às suas vivências pessoais e à política, ou não?
JC: A política está em toda a parte, é impossível fingir, quando ouço estas histórias do Museu Berardo é impossível não estabelecer uma relação política directa à arte e ao que acontece na arte em Portugal e a maneira como as pessoas funcionam perante os dois poderes o capital e o político.

JR: Nos anos sessenta a sua obra redimensiona-se com o uso de máquinas eléctricas e do mármore. De onde vem a vontade de transformação na sua obra, ao longo de todo o seu percurso?
JC: Eu comecei em cerâmica no atelier do Jorge Barradas com 9 anos e depois aos 12 fui para o atelier do António Duarte e aí o António Duarte aceitou-me, mas, não estava disposto a aturar-me e arranjou-me uma bancada na antecâmara do atelier ao lado do Mestre Rodrigues, que ainda é vivo e que era o canteiro que trabalhava para ele. Eu a ver o canteiro trabalhar comecei rapidamente a fazer talha directa, que é uma expressão que à muitos anos não ouvia. Mas usava-se na altura uma coisa que era fazer cópia do modelo nosso ou alheio. O primeiro que eu fiz foi em barro, onde eu nem me preocupei em fazer a forma em gesso e copiei uma cabeça que eu tinha feito. Foi a única vez que copiei uma peça minha e depois passei a atacar directamente a pedra. Depois vou para Londres e continuei a aplicar talha directa, além do barro que era obrigatório fazer para a universidade e depois o gesso em directo por conselho dos meus mestres e finalmente quando acabo o curso e arranjo atelier próprio percebi que não tinha capacidade económica, aliás os meus clientes é que não tinham capacidade económica para comprar uma peça minha feita à mão.

JR: Falamos também de uma época diferente?
JC: Agora ainda é pior, um indivíduo que passe dois meses a fazer uma peça em pedra e nenhum cliente lhe dá dois meses de sobrevivência.

JR: Então como continuou a trabalhar?
JC: Parei completamente o trabalho com pedra e comecei a fazer gessos e dos gessos fazia formas em borracha que depois enchia com fibra de vidro, pó de bronze ou cimento preto, por exemplo, a peça que está actualmente na exposição na Gulbenkian é uma peça que foi feita em gesso, o original foi feito em gesso, depois, foi moldado em borracha sintética e cheio em cimento preto. Um cimento preto especial que se usava e que usei com muito maus resultados e só muitos anos depois é que me apercebi porquê.

JR: E porquê?
JC: Porque esse cimento não podia enquanto em pó estar armazenado a temperaturas superiores a 35ºC e eu comprava no verão em armazéns do cais de Lisboa, que no Verão atingiam facilmente temperaturas superiores a 40ºC e então houve peças com bocados que apodreceram e tive de as emendar.
E lá fui aguentando, fazendo depois obras com resina de poliéster e pó de bronze e obtenho uns resultados um pouco melhores e houve um dia que vi as rebarbadoras a funcionar e andei a namorá-las. Houve um canteiro que foi a minha casa fazer um trabalho e deixou-me para o fim-de-semana a rebarbadora e eu tinha umas pedras e o resultado está ali, um torso feminino que fiz em duas horas. Foi a descoberta, a revelação.

JR: Nessa altura ainda se encontrava em Londres?
JC: Por um acaso foi em Lagos, porque na década de sessenta fazia navete, estava 6 meses por ano em Londres e 6 meses cá.

JR: A sua obra é muito singular e distinta em todo o mundo, pensa que se tivesse permanecido em Londres hoje estaria num patamar de notoriedade ao nível internacional diferente como, por exemplo, a Paula Rego?
JC: A Paula tinha andado num colégio inglês, casou com um inglês e era, digamos naturalizada inglesa, eu não, eu era um chato. Basicamente aquilo que se pode dizer é que eu era preto em Inglaterra, sempre tratado como preto, sem se quer ter a vantagem de ser preto, porque a vantagem de ser preto era para mostrar que eles eram liberais.

JR: Sentia muito essa discriminação?
JC: Sim, foi por essa razão que voltei, por não querer ser uma coisa de segunda como os emigrantes de leste são actualmente em Portugal, que vá lá. são mais bem tratados que os poucos portugueses na altura em Inglaterra.

JR: Quando voltou fez o D. Sebastião em Lagos, considera que é a sua grande obra, o seu grande marco artístico?
JC: Historicamente sim, emocionalmente não. Aconteceu, fiz aquela e as consequências de ter feito a obra, atingiram a nível social algo que não esperava, tornando-a um marco para os outros, para mim não, só foi mais uma, foi de facto a primeira grande peça que eu fiz, grande em tamanho.

JR: Nesse momento não sentiu que estava a trazer a escultura portuguesa para a modernidade?
JC: Nada, até achei que era uma peça ingénua, confesso que fiquei muito espantado com a escandaleira que foi gerada.

JR: As figuras femininas que elabora estão repletas de sensualidade, tem de certo, um fascínio particular pelo sexo oposto. Qual a importância da sexualidade no seu trabalho?
JC: À medida em que me fui emancipando, quando saí da escola, quando me estabeleci, quando comecei a tactear o caminho, e essa sensualidade vem preocupações da altura com vinte e poucos anos e achei natural que olhasse para os corpos femininos de uma maneira particularmente apelativa.
Ainda estava na Slade quando um professor de lá me perguntou se eu estava muito interessado em fornicação e respondi: eu estou, e tu não?
Depois com o início da Guerra do Ultramar e com o risco alto de poder ser chamado, houve uma passagem grande, por um período mais sombrio com guerreiros, e depois não com o fim da guerra, mas, com um papel que recebi a dizer que o mancebo João Cutileiro estava liberto do serviço militar, recomecei a fazer figuras mais femininas.

JR: Nunca teve vontade de desmaterializar o seu trabalho e realizar obras mais conceptuais?
JC: Talvez com a idade, com a perda de vigor físico me apeteça para continuar a fazer qualquer coisa, me apeteça mandar fazer em vez de ser eu a fazer, mas, isso obriga a uma alteração de qualidade, de tipo. Na minha escultura há uma fase intermédia que é este arco na rotunda em Évora, quase em frente a minha casa, que foi praticamente todo mandado fazer com excepção do escudo da cidade que é feito à mão.
Lembro-me que em 1981 houve uma grandiosa exposição do Henry Moore na Fundação Gulbenkian em que eu fiz uma visita guiada e chamei precisamente à atenção para esse preciso momento da obra dele, em que ele passou a contratar assistentes, porque para mim era notório as características diferentes face às obras anteriores. Outro exemplo é o Rui Chafes, que quando esteve incapacitado e andou a trabalhar por boca. Acho que se nota nas esculturas, um estudioso da obra e não da vida dele pode determinar o dia em que ele teve o desastre.

JR: O que pensa da arte contemporânea em Portugal praticada por jovens artistas?
JC: Vejo e verifico que há trabalhos de autores que eu gosto e depois nunca mais vejo mais nada desses autores, basicamente há 3 ou 4 jovens de quem eu gosto do trabalho. O meio artístico português e mundial é uma máquina de triturar e há muito vectores que levam ao abismo. E infelizmente posso dizer, que os jovens que vi com mais talento ficaram pelo caminho, o talento só não chega e até não é preciso tanto talento, o drive é mais importante e o tipo de drive, um cerrar de dentes.


JR: A sua última exposição tem o título de Baquianas. O que pretendeu transmitir?
JC: Usei da figura feminina para ilustrar o poema do Omar Khayam que prefacia o catálogo, mas, a exposição é uma homenagem ao Baco. As baquianas são peças musicais de homenagem ao Baco.

Recensão

Fernando Pernes redigiu este texto para o catálogo da exposição Macho-Fêmea de João Cutileiro, organizada pela Câmara Municipal de Aveiro, em Abril de 2000. A mostra pertenceu a um ciclo expositivo, nesta cidade, denominado Arte do Século.
Ensaísta e docente do ensino superior, Fernando Pernes, teve o essencial da sua formação em França e Itália, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi critico de arte de diversas revistas e jornais portugueses, secretário-geral da Sociedade Nacional de Belas Artes, colaborador de duas galerias privadas, director do Centro de Arte Contemporânea do Museu Nacional Soares dos Reis, docente da Faculdade de Belas Artes do Porto e autor de várias monografias e textos sobre artistas portugueses.
Neste texto o autor começa por diferenciar a escultura moderna da estatuária académica-naturalista, que, considerava ter um papel mais decorativo, religioso, político ou de âmbito comemorativo. Esta estatuária era baseada no imitativo realístico e com aspirações monumentalistas, estando habitualmente associada a materiais nobres, como o bronze. Já a escultura moderna recorria a matérias pobres, com duração fugaz e marcada pelo experimentalismo. Tinha mensagens de variada leitura e formas abstractas.
O autor refere também, que, pelos preceitos clássicos se considerava a primazia pela ilustração narrativa-ideológica, em detrimento da expressividade pela matéria e singularidade, enquanto que, a arte ocidental moderna convencionava-se num conhecimento experimental conceptual, cessando com o figurativo e a lealdade perceptiva, para uma arte mais intelectual e de interioridade psíquica.
Na sua óptica, João Cutileiro, pertencia a uma geração subsequente aos artistas referentes às primeiras vanguardas do século XX, tendo sabido ser digno procedente e usuário de todo esse passado cultural, com uma criatividade experimental carregada de modernidade e cheia de ancestralidade, mas, já sem quaisquer romantismos. Considerava-o o escultor da pedra e do corpo com uma arte de evidente notação telúrica e vitalista.
Em Cutileiro tudo desponta numa nudez pouco planeada, mostrando-se antes numa deliberada ambiguidade, sendo desse modo as suas mulheres sempre meninas, onde a sensualidade dos seus corpos se agrega ao desejo, e nas quais, nada se esconde. Fernando Pernes pensa mesmo que Corpos de luz – Flores de Pedra poderia ser um título global para a maioria da obra de Cutileiro, onde o entusiasmo das flores é por vezes subjacente ao erotismo das formas femininas. Desde os anos sessenta que João Cutileiro reúne a mulher e as plantas sexualizadas, cujos frutos ou estames hirtos compelem a sugestões de órgãos genitais.
O crítico de arte vê Londres como fundamental na formação profissional de João Cutileiro, embora, muita da sua obra também transporte a inspiração alentejana que herdou dos pais. O seu experimentalismo foi apurado na sua permanência em Londres com diversificados materiais como cimento, poliéster, fibra de vidro, plásticos e naturalmente o mármore, suporte preferencial na actividade do escultor desde 1966. Estes anos sessenta foram pródigos para o currículo de João Cutileiro, mas, também tempo de guerras coloniais, que influenciaram a sua obra com o aparecimento dos designados guerreiros. Eles são detentores da faceta mais surrealista da obra de Cutileiro, com uma disposição grotesca são a prova da aversão do artista à guerra.
Em 1973 é inaugurada a escultura de D. Sebastião em Lagos, que o autor descreve como obra-prima de João Cutileiro, considerando-a um marco histórico e como manifestação prenunciadora da vontade de toda uma geração que surgiria. Já o Camões erguido em 1980, apresenta-se como uma escultura anti-épica, tentando reverter a monumentalidade para a fragilidade.
Fernando Pernes considera então, que João Cutileiro após ter erotizado a nossa escultura, desmonumentalizou a estatuária oficializada em Portugal. Por essas actuações criadoras, despiu-a de preconceitos e convenções, cruzando a ternura e a dor e declinando o mimetismo representativo, pode Cutileiro, ser englobado no cingido grupo de artistas nacionais que souberam ser grandiosos.Penso que o texto de Fernando Pernes é adequado ao seu propósito, sendo um pouco biográfico sobre a vida e obra de João Cutileiro, mas, enquadrando de forma inteligente e hábil a crítica de arte aos vários temas que o artista abordou e realçando as suas principais obras e a sua importância histórica para a arte portuguesa. Deixo apenas uma nota, pela falta da apreciação das figuras bífidas de Cutileiro, que mereciam, na minha perspectiva, ser referidas na análise crítica de Fernando Pernes.

O percurso de João Cutileiro

João Cutileiro nasceu em Lisboa a 26 de Junho de 1937, teve uma infância e adolescência com muitas viagens, por causa da profissão de seu pai, que foi médico pertencente à Organização Mundial de Saúde
Durante este período da sua vida frequenta os ateliers de António Pedro, Jorge Barradas e António Duarte, onde contactou com o desenho, a pintura, a cerâmica e a escultura. Realiza a sua primeira exposição em Reguengos de Monsaraz aos catorze anos, matricula-se nas Escola Superior de Belas Artes de Lisboa em 1953, frequentando-a apenas por 2 anos, sentindo-se sufocado pela mentalidade portuguesa muito ligada ao clássico e ao bronze, ingressa então na Slade School of Art, em Londres, no ano de 1955, que termina quatro anos mais tarde.
Na década de sessenta começa a utilizar máquinas eléctricas de corte da pedra, o que lhe permitiu dedicar-se mais à pedra e em especial ao mármore e colocar toda a sua imaginação e liberdade nas obras.
Ao voltar definitivamente a Portugal fixa-se em Lagos e é lá que realiza o "D.Sebastião", gerando muita controvérsia, principalmente, porque, o artista tinha posto fim ao academismo da escultura do Estado Novo, refazendo a tradição que imperava e afirmando a singularidade da sua obra. O seu sangue Alentejano levou-o, em 1985, a mudar-se para Évora onde permanece até hoje.
O experimentalismo é uma característica indiscutível da sua obra, em conjunto com um método de trabalho onde impera a isenção de ideias pré-concebidas, onde contacta com o material numa relação totalmente aberta. Esta vontade de experimentação veio-lhe desde muito novo, e formou-se e desenvolveu-se pela convivência com diversos estilos e épocas, onde dominam, como grandes exemplos, a utilização dos mármores coloridos e a originalidade das suas figuras bífidas.
Os principais temas de João Cutileiro são os guerreiros, as flores, as árvores e os pássaros, as figuras bífidas e as sobejamente conhecidas as figuras femininas (torsos e meninas). Considero-os temas e não fases, porque, estão todos interligados, são muitas vezes abordados em simultâneo e não têm um período temporal definido.
As figuras femininas, impregnadas sempre de carnalidade, adoptam em João Cutileiro, duas formas basilares, os torsos e as meninas. Nos torsos, com formas vigorosas de sensualidade, procura-se o deslumbramento que a imagem da mulher arcaica exerce no homem, anunciando um amadurecimento da escultura, fazendo uma ligação da obra do artista ao clássico, em que ele de certo modo abdica do seu estilo para se expressar segundo uma tradição mais greco-latina. No entanto, não nos podemos esquecer, que a sua primeira peça em mármore com máquina eléctrica, foi precisamente um torso. As meninas de João Cutileiro acentuam na figura feminina a sua sedução, algumas vezes, de modo simples, outras, envolvidas por formas da natureza ou por espaços cenográficos para melhor compreensão da própria temática. São personagens que nos confrontam com a sexualidade numa sociedade que pouco goza o prazer instintivo, fazendo uma homenagem à mulher como fonte de vida e de amor para o homem.
As figuras bífidas aparecem como uma descoberta, por parte de João Cutileiro, para acentuar uma maior expressão e profundidade do bloco de pedra e explorar a assimetria na simetria dos corpos, associando a forma bífida à ideia do sujeito dividido na sua relação com o mundo e consigo próprio, tendo as metades de cada uma destas figuras bipartidas, acções interactivas entre elas ou expressões autónomas. São de certo modo a parte da obra do escultor mais próxima do abstracto, onde os elementos que compõem a peça em conjunto funcionam como figura, mas, separadamente seriam abstractos.
A parte mais surrealista da sua obra são declaradamente os guerreiros, tema que é tratado pela escultura desde a história da antiguidade, mas, que com Cutileiro são figuras sugestivas, representativas e nada corpóreas, transformando, deste modo, um tema clássico e universal num tema seu, numa associação quase directa à sua escultura.
O último dos temas do artista que faço menção, são as flores, árvores e pássaros (digo pássaros porque é o mais habitual, mas poderiam ser, mais genericamente, animais), que são correntemente articulados nas suas obras com a figura humana e sexualizados de forma não declarada, para as referências perceptivas do observador o levarem a fazer tais associações. As plantas desempenham uma função de reprodução e os frutos interpretam os órgãos genitais humanos.
João Cutileiro é o responsável pela abertura da escultura portuguesa para a modernidade e o seu marco na história da arte já é sobejamente reconhecido e merecido, afirmando a escultura como uma realidade da sua própria vida, numa continuidade de temas e uniformidade de procedimentos que confirmam o seu esforço diário e a sua originalidade.

José Rafeiro
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